Muita gente tem debatido e repercutido no últimos dias, com misto de incredulidade e sadismo, o caso da mulher que manteve relações sexuais com um morador de rua, em Planaltina, no Distrito Federal.

O quadro que surge das declarações da própria senhora e de seu marido, entretanto, envolvem uma complexa situação jurídica que serve como paradigma de análise para inúmeros casos de denúncias por violência sexual na modalidade denominada pelo nosso Código Penal como “estupro de vulnerável”, especificamente junto ao seu parágrafo 1º do artigo 217-A, onde referida vulnerabilidade surge de enfermidade, deficiência mental ou qualquer outro motivo que impeça a vítima de oferecer resistência.

Isso porque, referida senhora gravou um áudio onde afirma ter visto, no morador de rua, a face de seu próprio marido — e, ainda, a face divina — enquanto este, por sua vez, afirma ter sido ela vítima de violência sexual.

Destas declarações, duas importantes hipóteses surgem para análise: a primeira, no sentido de que o áudio da mulher seja apenas uma justificativa para o ato que, deliberadamente, decidiu realizar; a segunda, no sentido de que seu áudio é verdadeiro.

Se adotarmos a primeira hipótese como válida (áudio como desculpa para justificar a traição conjugal), tanto a senhora quanto o morador de rua estavam em ato sexual livre e consentido por ambas as partes. A partir daí, as agressões perpetradas pelo marido contra o morador de rua são injustificadas pelo ponto de vista típico e, também, não acobertadas pela excludente de ilicitude da legítima defesa de terceiros.

Neste panorama, resta sabermos se o marido agiu com erro sobre os elementos do tipo e, caso positivo, se o erro era vencível ou invencível — artigo 20 do Código Penal.

Se, ao contrário, adotarmos a segunda hipótese (áudio verdadeiro, demonstrando, portanto, ausência de higidez mental — pois ninguém vê a face do marido e do divino em terceiras pessoas, sejam elas quem forem), estaremos diante de um caso onde a tipicidade do artigo 217, parágrafo 1º, do Código Penal, incidirá sobre o comportamento do “agressor”.

Entretanto, teremos aí que analisar o comportamento do próprio morador de rua: ele tinha condições de saber que referida senhora não estava em posse de suas faculdades mentais? E, se tais condições não existiam, estará, ele, no mesmo erro sobre elementos do tipo penal acima mencionado?

Percebe-se o intrincado embate jurídico que surge em qualquer uma das hipóteses. Entretanto, ultrapassando a questão levantada por este específico caso, temos que as dúvidas por ele geradas se aplicam às milhares de acusações de estupro que se valem da embriaguez/drogadição da vítima para condenarem o homem que manteve relação sexual com uma mulher em tais condições.

Nestes casos, e seguindo a mesma lógica do exemplo concreto aqui utilizado como paradigma, vamos ao problema: a alegada embriaguez/drogadição da vítima era verdadeira e potente a ponto de eliminar, de si, o autocontrole ou capacidade de resistência?

Caso negativo, estaremos diante de um ato sexual consentido e, consequentemente, de uma falsa acusação de estupro; caso positiva, resta ainda a questão: o “agressor” tinha condições de saber que a “vítima” estava em estado de confusão mental a ponto de não poder consentir, validamente, com o ato sexual?

E, para agravar a complexidade do exposto, uma derradeira situação hipotética: se homem e mulher começam a prática de atos libidinosos diversos da conjunção carnal (beijos etc) enquanto, em conjunto, ingerem substância psicotrópica, e, quando realizam o ato em si, ambos já estão sem domínio da própria consciência e percepção do mundo que os cerca (apesar das palavras difíceis, trata-se de exemplo comum, onde ambos bebem, juntos, em uma festa qualquer), não estaremos diante de um caso onde a vítima não detinha capacidade de resistência, mas o agressor também não detinha capacidade de analisar referida ausência intelectiva/volitiva?

Como bem cita Gladwell em seu livro “Falando com Estranhos[1]“, ao analisar casos de violência sexual mediante embriaguez dos atores, “o consentimento é algo que duas partes negociam, pressupondo que cada lado numa negociação seja quem alega ser. Mas você pode verificar o consenso quando, no momento da negociação, ambas as partes estão tão distantes do seu verdadeiro eu?”.

E nem há que se ventilar a hipótese de ser fácil percebermos quando alguém se encontra dopado a ponto de perder sua capacidade de resistência, pois a imagem de uma pessoa “caindo pelas beiradas” é reducionista e fruto de uma equivocada compreensão dos efeitos da bebida em uma pessoa.

Pelo contrário, inúmeras pesquisas demonstram que a ingestão rápida de altas doses de álcool atinge o hipocampo sem afetar, contudo, o cerebelo. Significa dizer que a pessoa que ingerir a substância desta maneira não estará com problemas de fala, equilíbrio e coordenação — ou seja, não demonstrará sua embriaguez — e, ainda assim, não terá condições reais de decidir sua vida em acordo com os desejos que detém quando não dopada.

Ilustrando o exemplo acima, novamente Gladwell: (…) num estudo em Orange County, na Califórnia, mais de mil motoristas foram desviados para um estacionamento, tarde da noite. Após preencherem um questionário sobre sua noite, foram interrogados por estudantes de pós-graduação treinados em detecção de embriaguez (…) depois que os entrevistadores fizeram seu diagnóstico, os motoristas foram submetidos a um exame para detectar nível de álcool no sangue. Eis quantos motoristas bêbados foram corretamente identificados pelos entrevistadores: 20%.

Se estudantes treinados erraram em 80% dos casos que foram chamados a identificarem como embriaguez, o que se dirá do rapaz comum, em uma festa, bebendo junto com a menina que deseja?

Podemos afirmar, com base em tal pesquisa, que 80% das condenações de estupro de vulnerável por ausência de capacidade intelectiva da vítima em consentir com o ato acabam por colocar na cadeia pessoas que jamais poderiam identificar este estado mental em suas vítimas?

E, nestes casos — impossibilidade de identificação da ausência de capacidade intelectiva/volitiva da vítima —, haverá estupro ou erro sobre elementos do tipo? Volta-se ao início deste artigo: o morador de rua teria condições de saber que sua acompanhante, ao enxergar o marido e o Divino em sua face, estava com sua consciência alterada? A resposta a tal questão se aplicará, indubitavelmente, ao rapaz da festa que saiu com uma menina embriagada, afetada em seu hipocampo mas não em seu cerebelo.

Enfim, que o debate sobre o caso específico gere frutos positivos para toda uma sorte de acusações que inundam nosso Poder Judiciário.

[1] GLADWELL, Malcom, Falando com Estanhos, Sextante, 2019.

Daniel Gerber é advogado criminalista, especialista em Direito Penal Econômico, mestre em Ciências Criminais e sócio-fundador de Daniel Gerber Advogados Associados.

Publicado em Consultor Jurídico (https://www.conjur.com.br/2022-mar-18/daniel-gerber-mulher-mendigo-tese-defesa)