
Infelizmente ou felizmente, nossos desejos e aversões são déspotas impacientes e, portanto, exigem satisfação imediata.
As vítimas do tão falado “estelionato sentimental” nada mais são do que pessoas com hábitos e desejos duvidosos. Óbvio que existem exceções. Isso porque se você desejar algo que está fora de seu controle – emprestar dinheiro para alguém para que mantenha um relacionamento ou para que case contigo -, sem dúvida, o resultado será uma decepção.
Com o devido respeito às vítimas do “golpista do Tinder” e de outros milhões de casos idênticos espalhados no mundo, mas o golpe taí, cai quem quer. Os estragos eram previsíveis e até mesmo evitáveis. Bastaria que se atentassem aos detalhes, ao estilo de vida, as atitudes suspeitas e abrissem os olhos para os sinais que são dados desde o primeiro encontro amoroso.
Em relação ao novo crime “estelionato sentimental”, temos que parar urgentemente com essa mania de criar tipificações indiscriminadamente. O crime de estelionato (art. 171, CP), por si só já abarca tais situações, quando dispõe: “obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento”, que nesse caso seria o afeto. Esse é, inclusive, o entendimento do Superior Tribunal de Justiça.
O estelionato sentimental é toda a forma de obtenção de vantagem ilícita no decurso de uma relação amorosa em que um indivíduo se aproveita da lealdade, confiança e afeto alheio para enriquecimento próprio, desrespeitando a boa-fé objetiva e, consequentemente, acarreta a obrigação de indenizar a vítima pelos prejuízos sofridos.
Ora, se o marido que divide os custos de uma casa com sua esposa resolve trair a companheira e levar sua amante para dentro do apartamento do casal, pela mesma linha de raciocínio, deverá responder pelo crime de estelionato sentimental. Isso porque obteve para si vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo alguém em erro, mediante artifício. Ou seja, passaríamos a criminalizar inúmeras condutas utilizando a mesma linha de raciocínio. Com o devido respeito, mas se a vítima fosse um homem, sequer pensaríamos em crime – situação essa que ocorre rotineiramente.
Fato é que a pretensa vítima deve demandar o seu ex-companheiro no âmbito cível, para aí sim tentar recuperar o seu prejuízo material e moral, uma vez que tais casos configuram perfeitamente a quebra da boa-fé estipulada pelo Código Civil em seus artigos 186, 187 e 927. O artigo 927 do Código Civil dispõe que que “aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.”
É um gravíssimo equívoco legislar sobre relacionamentos afetivos. Devemos parar de uma vez por todas de criar ramificações para tipificações penais já existentes, a não ser que extremamente necessário.
*Sofia Coelho Araújo é advogada criminalista, especialista em Direito Público, responsável pelo Núcleo de Violência de Gênero do escritório Daniel Gerber Advogados
Publicado em Estadão (https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/o-golpe-tai-cai-quem-quer/)