O habeas corpus e a justa causa para a ação penal: Breves considerações sobre a vinculação entre a denúncia e os elementos objetivos de convicção do ministério público.
Autor: DANIEL GERBER[1]
- Objeto
Muitas são as oportunidades onde, no exercício da Advocacia Criminal, deparamo-nos com uma denúncia que traduz uma narrativa fática amparada, tão somente, no clamor público gerado pelo ato ou, quiçá, no momento político de uma determinada região. O Advogado, por sua vez, e no exercício correto de suas obrigações profissionais, ingressa com o competente habeas corpus, alegando, justamente, a ausência de base fática da acusação. Para sua ‘surpresa’, no entanto, recebe como resultado de seu esforço uma lacônica resposta que, sequer analisando o caso em si, alega ser inviável a análise de provas em tão estreita via.
Sem dúvida podemos concordar que vários são os casos onde tal assertiva pode estar correta. Não obstante, vários são, também, os casos onde uma análise qualitativa e quantitativa dos elementos utilizados pelo Ministério Público para embasar sua denúncia se torna não apenas necessária, mas, indo além, verdadeira obrigação por parte do Poder Judiciário.
O presente estudo traz, por objetivo, discutir, ainda que brevemente, o conceito de justa causa da ação penal quando atrelada à necessidade de elementos objetivos e suficientes, no plano fático, para a legitimação da persecutio criminis in judicio.
- O Processo Enquanto Pena
Consoante farta doutrina e jurisprudência, o reconhecimento do próprio processo penal enquanto pena necessária que se impõe ao suspeito pela prática de um suposto ato delituoso torna-se inegável.
Não obstante o próprio conceito de processo penal estar inserido em uma ótica de limitação do poder de punir, eis que impositor de regras inafastáveis para o exercício legítimo da força ora sinalada, sua incidência acaba por gerar, tanto no espírito quanto no próprio corpo do acusado, por vezes, efeitos tão ou até mais drásticos do que a própria condenação.
Como mera exemplificação do alegado, quantas não são as vezes que nosso Poder Judiciário, em delitos cometidos sem violência e sem grave ameaça, cuja pena em concreto não ultrapassa quatro anos (permitindo, assim, a aplicação de uma pena substitutiva, conforme artigo 44, CP), acaba, ante necessidades prementes, impondo uma restrição cautelar ao direito de ir-e-vir do acusado? Em casos como esse, a premissa ora ventilada se comprova integralmente, pois a imposição do direito penal material irá gerar uma pena substitutiva, enquanto o processo, de cunho instrumental, acaba por gerar a própria restrição à liberdade (quebrando, diga-se de passagem, o conceito necessário de garantia biunívoca que marca o entrelaçamento entre direito penal e direito processual penal).
Carnelutti já apontava tal situação, afirmando que a justiça humana é feita assim, que nem tanto faz sofrer os homens porque são culpados quanto para saber se são culpados ou inocentes. Esta é, infelizmente, uma necessidade à qual o processo não se pode furtar, nem mesmo se o seu mecanismo fosse humanamente perfeito…o processo por si mesmo é uma tortura[2]…
E é justamente por deter o caráter de pena necessária que o Estado, na figura do Ministério Público, deverá, quando do oferecimento de sua acusação, restar amparado em elementos suficientes e objetivos de convicção, sob pena de restar ausente a justa causa que legitima a imposição de uma “pena” sobre o cidadão.
III. Da Carga Probatória – Nulla Accusatio Sine Probatione –Probabilidade e Certeza -Juízo de Admissibilidade da Acusação – Justa Causa para Ação Penal
Irrefutável o mandamento pátrio ao ordenar que cabe à acusação desvelar hipóteses e descobrir provas, não sendo imputada ao acusado nenhuma espécie de obrigação similar e não sendo permitido, ao Julgador, utilizar apenas de seu livre convencimento na análise das postulações acusatoriais.
Ferrajoli explana tal situação através da teoria das ‘provas legais negativas’, según la cual, si es cierto que ninguna prueba legalmente predeterminada puede ser considerada suficiente por si sola para garantizar la verdad de la conclusión em contraste com la libre convicción del juez, ni siquiera la libre convicción puede ser considerada por sí sola suficiente a tal fin, al ser necesario que vaya acompañada de alguna prueba legalmente predeterminada[3].
Percebe-se, através do princípio da presunção de inocência, devidamente insculpido em nossa Carta Magna (e ainda que entendido, por muitos, como estado de inocência ou presunção de não culpabilidade), que ao acusado é garantido o conforto de somente ser processado ou condenado quando a acusação houver provado o fato e o Direito que lhe imputa.
Por óbvio que a prova de um fato, no que tange ao juízo de admissibilidade de uma acusação, não é a mesma prova a que se refere o juízo condenatório. Pelo contrário, poder-se-ia trabalhar, aqui, com dois distintos e complementares conceitos, quais sejam o de probabilidade e certeza. Maier avaliza o argumento, afirmando que durante el transcurso del procedimiento algunos actos y decisiones intermédias exigen tan solo um fundamento de menor grado[4]… Para o autor, as decisões que antecedem o julgar (e, dentre elas, o recebimento de uma denúncia) necessitam, apenas, de uma probabilidade positiva.
A distinção entre certeza (positiva) e probabilidade (positiva) encontra-se, por sua vez, perfeitamente delineada na lição de Malatesta. Para o autor italiano, a primeira distinção a ser realizada é entre certeza e dúvida: a certeza, em seus dizeres, seria representada pela crença do indivíduo na percepção que pode deter entre o fato que lhe é apresentado enquanto fenômeno e sua convicção ideológica. A dúvida, no entanto, traz consigo maior complexidade. Neste sentido, afirma o autor que a dúvida é um estado complexo. Existe dúvida em geral, sempre que uma asserção se apresenta com motivos afirmativos e negativos; ora, pode dar-se a prevalência dos motivos negativos sobre os afirmativos e tem-se o improvável; pode haver igualdade entre os motivos afirmativos e os negativos e tem-se o crível no sentido específico. Pode haver, finalmente, a prevalência dos motivos afirmativos sobre os negativos e tem-se o provável[5].
Conjugando-se a lição de ambos os autores e, por óbvio, não esquecendo os dizeres de Carnelutti, temos que somente poderá se erguer um processo-crime em desfavor de um cidadão – impondo-lhe, pois, a ‘pena processual necessária’- se a acusação, quando do oferecimento de sua exordial, ancorar sua pretensão sobre uma probabilidade positiva, passo este que, na prática, se traduz na existência de um mínimo lastro probatório a ancorar prevalência dos motivos afirmativos sobre os negativos ou, dito em bom português, um mínimo conteúdo probante que permita identificar a narrativa do Ministério Público como provável.
Para tanto, inclusive, é que se realiza a necessária distinção entre atos de prova e atos de investigação, sendo estes últimos necessários para justificar medidas cautelares e outras restrições adotadas no curso da fase pré-processual e para justificar o processo ou o não-processo[6].
Tal ponto merece destaque: na esteira da classificação de atos de prova e atos de investigação, temos que esses últimos: a) não se referem a uma afirmação, mas a uma hipótese…c) servem para formar um juízo de probabilidade, e não de certeza…f) não estão destinados à sentença, mas a demonstrar a probabilidade do ‘fumus comissi delicti’ para justificar o processo (recebimento da ação penal) ou o não-processo (arquivamento)[7]…
Escancara-se, pois, a obrigação imposta ao órgão acusador de legitimar sua pretensão acusatória em atos de investigação preliminares que forneçam ao Poder Judiciário o lastro probatório gerador de probabilidade aos argumentos expendidos.
Insere-se, aqui, o conceito de justa causa para a ação penal. O que não se deve admitir é que o cidadão fique à mercê de um processo (que, por si só, é uma pena) baseado, tão somente, em meras possibilidades, pois “possível” tudo é. Pelo contrário, exige-se que o fato narrado pela acusação ultrapasse os limites do possível e adentre no campo do provável, sob pena de transformarmos o científico processo penal em um conglomerado de regras assistêmicas a serem utilizadas ao bel prazer do órgão acusador.
E, para que toda esta argumentação não seja analisada como expediente defensivo de alguém que tenta evitar um justo processo contra si, vale citar novamente Carnelutti que, em análise específica ao tema, afirma: El ministério público, pues, antes de formar la imputación, debería si no precisamente convertir la sospecha del delito em certeza, cuando menos consolidar la sospecha, hasta el punto de considerar probable el delito[8]..(g.n.).
Especificamente em relação ao direito pátrio, o entendimento não poderia ser diferente, até mesmo porque estamos a versar sobre uma base ética que deve fornecer substrato para toda e qualquer atuação de um órgão público.
Nesta senda, e ainda que se possa, hipoteticamente, trabalhar com a excepcionalidade de um ato imoral que vá ao encontro de uma base ética (por exemplo, uma prova ilícita captada pelo acusado para provar a sua inocência), tem-se que, em se tratando de órgão público, a ética somente resta afirmada através da moralidade do ato. Como conseqüência lógica de tal imposição, a ética de um ordenamento jurídico que apregoa a liberdade do cidadão e a garantia de seus direitos individuais somente se encontra preservada sob uma acusação que fulcra seus dizeres na probabilidade até agora discutida (legitimidade moral[9]).
Por fim, a própria existência do artigo 12, CPP, ao afirmar que o inquérito, quando servir de base para a denúncia, deverá acompanhá-la, ou do artigo 18 do referido diploma legal, ao afirmar que a autoridade policial somente pode proceder a novas investigações mediante notícia de outras provas, ou, ainda, do art. 39, par. 5º, CPP, afirmando que a dispensa do inquérito policial, por parte do MP, somente será possível se houver a presença de elementos que habilitem a ação, apenas atesta o até então alegado, deixando claro que a existência de um lastro probatório apto a conduzir a hipótese acusatória do campo da possibilidade para o campo da probabilidade torna-se essencial ao correto desenrolar da ação penal, sob pena de negar-se vigência aos referidos dispositivos e, conseqüentemente, aos próprios princípios do contraditório e ampla defesa.
- Considerações Finais
Percebendo-se, então, a necessidade do suporte probatório como legitimação da narrativa acusatorial, torna-se óbvio que o habeas corpus para trancamento da ação penal irá exigir, por vezes, a análise do caderno processual e das peças que acompanham a denúncia. No entanto, não está a se versar, aqui, sobre uma tentativa de ‘alargar’ a ‘estreita via’ do habeas corpus. Pelo contrário, e já finalizando, concordamos com Schmidt quando, em análise à hipótese ora ventilada (verificação de suficiência probatória), afirma não se tratar de necessidade de dilação probatória, mas sim de exame axiomático do suporte probatório que fundamenta uma determinada decisão, além da análise da suficiência dos fundamentos descritos na denúncia[10], situação essa que torna o ‘remédio heróico’ absolutamente aceitável por parte de nossos Tribunais.
[1] Advogado Criminalista, Mestre em Ciências Criminais pela PUC/RS, integrante do conselho permanente do ITEC (Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais), professor nos cursos de especialização em Direito Penal e Processo Penal da Unirriter/RS e IDC/RS.
[2] Carnelutti, Francesco. As miserias do processo penal, Conan, 1995, p. 45/46.
[3] FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón. Teoría del garantismo penal. Trotta, 2000, p. 147.
[4] MAIER, Júlio B.J. Derecho Procesal Penal. v. I. Fundamentos. Editores del Puerto, 1999, p. 496.
[5] MALATESTA, Nicola Framarino. A lógica das provas em matéria criminal. Conan, 1995, p. 19.
[6] LOPES JÚNIOR, Aury. Sistemas de investigação preliminar no processo penal. Lúmen Júris, 2001, p. 119.
[7] LOPES JÚNIOR, Aury. Sistemas de investigação preliminar no processo penal. Lúmen Júris, 2001, p. 120.
[8] CARNELUTTI, Francesco. Principios del proceso penal. Ediciones Jurídicas Europa-America, 1971, p. 97.
[9] Para Boschi, Como é dever do Estado proteger os direitos e as liberdades fundamentais e considerando, ainda, que a instauração do processo criminal gera aflições e constrangimentos de toda ordem ao imputado, segue-se que o válido desencadeamento da ‘persecutio criminis’ pelo titular da pretensão punitiva (MP ou querelante) pressupõe que elementos de prova idôneos e legítimos apóiem a denúncia, queixa ou aditamento, de modo a evidenciar que a acusação não é absurda ou um capricho do acusador mas que, pelo contrário, reúne fidedignidade e veicula o interesse social na apuração do fato e na responsabilização de seu autor…as provas, ‘mesmo as provas precárias’, constituem, portanto, o objeto da justa causa, embora doutrinadores de renome a confundam com o próprio interesse de agir. BOSCHI, José Antônio Paganella. Ação penal. Denúncia, queixa e aditamento. AIDE, 2002, p. 131/132.
[10] SCHMIDT, Andrei Zenkner, mimeo.