REMINISCÊNCIAS DE UM PASSADO NÃO TÃO DISTANTE
DANIEL GERBER[1]
Lembro das minhas discussões com meu querido amigo Luiz Monte, quando integrávamos um mesmo time de Advocacia criminal. Dividíamos a sala, as angústias, as vitórias, e ele, 20 anos mais novo, se revoltava com praticamente todas as petições do Ministério Público. Dizia: “veja só o que este procurador está pedindo. Que absurdo. Como podem falar de isenção?” Eu, lidando com o embate há mais de vinte anos, apenas respondia: “Tu pensas isso porque entendes o procurador como um fiscal da lei, algo que, no processo penal, ele não o é. Se o entenderes como parte processual, verdadeiro acusador, verás que ele faz aquilo que tu também farias defendendo tal posição”. E, concluía eu: “O problema, Luiz, é o Judiciário, e não a acusação”.
A delação da JBS escancara aquilo que eu falava ao meu jovem amigo. A PGR, no caso, agiu como era de se esperar. Fez um acordo que para seus interesses é legítimo. Idem, no que toca ao interesse dos empresários. O problema, mais uma vez, é o Judiciário.
Explico: desde o começo da operação Lava Jato, o Supremo Tribunal Federal blindou os termos das de acordo das delações premiadas contra terceiros, afirmando que a ninguém “de fora” é legítimo contestar suas cláusulas, podendo apenas se defender do conteúdo. Por tal motivo, por exemplo temos inúmeros casos onde delatores assumem mentiras contadas em seus primejros depoimentos, sem perder os benefícios. Até mesmo o recall de delações se criou em praias tupiniquins, como se estivéssemos falando de peças defeituosas de veículos que precisam conserto.
Mais: em inúmeros acordos feitos com funcionários da Petrobras, o benefício de “permanecer milionário com valores desviados” foi parte do acordo, ainda que não em cláusula expressa. Tais funcionários, que nunca nada produziram, moram hoje em mansões à beira mar, almoçam em Angra dos Reis ou em condomínios paradisíacos na Barra da Tijuca, e sobre isso apenas a Advocacia reclamava. A Odebrecht, por exemplo, tem um “príncipe” que admite ter sido roubado em mais de três bilhões por parte de seus executivos sob a desculpa de “corrupção”, mas ainda assim foi saudada como “a delação do fim do mundo” e utilizada como plataforma política e moral de muitos.
No caso da JBS, a única diferença que se percebe é que o empresário delator está feliz ao lado da esposa, admitindo ter se utilizado do sistema a seu favor (tanto o financeiro quanto o legal), ao contrário do citado “príncipe” que, não obstante ter colocado sete times de futebol em campo para auxiliar o Poder Público (setenta e sete delatores), continua preso.
Felicidade alheia, no Brasil, é crime mais grave (muito mais) que corrupção. Mas fico eu feliz em saber que o próprio STF pensa, agora, em debater o assunto e rever cláusulas que estavam na condição de “imexíveis”. Quem sabe assim a Advocacia também possa reclamar de outros acordos que nutrem a Lava Jato – do contrário, nada há que se possa fazer quanto à felicidade de Joesley (aqui, a maestria da estratégia jurídica da PGR e da empresa: ou o acordo da JBS permanece válido, ou, ao fundo, toda a Lava Jato pode ser questionada, algo que, à toda evidência, não irá ocorrer).
Volto ao início de minhas lembranças, como se aqui estivesse conversando com Luiz: o problema nunca foi a acusação, e sim, o árbitro.
[1] Advogado Criminalista. Autor, Mestre em Ciências Criminais e Professor convidado nos cursos de pós-graduação em Direito Penal e Processual Penal na UNISINOS, UNIRITTER e IDC. Membro do Conselho Permanente do Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais (ITEC).