Como bem destaca o Ministro Edson Fachin nos autos da ADPF 403, “privacidade é o direito de manter o controle sobre a sua própria informação”. Tal compreensão torna-se fundamental diante da polêmica que surge quanto à correta interpretação dos limites que a Lei de Marco Civil da Internet gera aos poderes investigatórios de autoridades administrativas, Delegados de Polícia e representantes do Ministério Público.
Referida legislação, como bem se sabe, dispõe que a “guarda e a disponibilização dos registros de conexão e de acesso a aplicações de internet de que trata esta Lei, bem como de dados pessoais e do conteúdo de comunicações privadas, devem atender à preservação da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das partes direta ou indiretamente envolvidas” (artigo 10, Lei nº 12.965/2014).

Seus dispositivos instrumentais, por consequência, serão interpretados em acordo com tais princípios – que, por sua vez, se coadunam com a proteção constitucional da intimidade -, motivo pelo qual as permissões de contato direto entre as mencionadas autoridades com provedores de internet, previstas ao longo do diploma legal, exigem interpretação restritiva.
E, antecipando-se ao problema que poderia surgir na interpretação de conceitos técnicos e relacionados ao mundo virtual, o próprio legislador, no artigo 5º da lei, define taxativamente conceitos que, adiante, estabelecem as hipóteses de contato entre as referidas autoridades e provedores.
Como exemplo, as autorizações constantes dos parágrafos 2ºs dos artigos 13º e 15º, respectivamente (§ 2º A autoridade policial ou administrativa ou o Ministério Público poderá requerer cautelarmente que os registros de conexão sejam guardados por prazo superior ao previsto no caput; § 2º A autoridade policial ou administrativa ou o Ministério Público poderão requerer cautelarmente a qualquer provedor de aplicações de internet que os registros de acesso a aplicações de internet sejam guardados, inclusive por prazo superior ao previsto no caput, observado o disposto nos §§ 3º e 4º do art. 13.), somente serão interpretadas à luz das definições constantes nos incisos VI e VIII do referido artigo 5º (VI – registros de conexão: o conjunto de informações referentes à data e hora de início e término de uma conexão à internet, sua duração e o endereço IP utilizado pelo terminal para o envio e recebimento de pacotes de dados; VIII – registros de acesso: o conjunto de informações referentes à data e hora de uso de uma determinada aplicação de internet a partir de um determinado endereço IP).
Em hipótese alguma, portanto, os conceitos de conexão e acesso serão ampliados além de tais margens, motivo pelo qual não se confundem com o conceito de “conteúdo” de mídia. A conclusão parece banal, mas tem gerado confusão.
Nessa linha, alguns contatos diretos do Ministério Público com os provedores de Internet se valem dos permissivos acima destacados para requererem que registros de conexão, acesso e conteúdo de mails sejam preservados pelo dobro do prazo legal.
Tal agir não se encontra confortado em lei. Primeiro, porque “conteúdo” se refere a material que expressa a intimidade do indivíduo, seja por fotos, conversas ou outro elemento que espelhe sua produção intelectual, social ou espiritual.
Segundo porque o caput do artigo 10, ao afirmar que existirá guarda de (a) registros de conexão, (b) de acesso a aplicações de internet, (c) dados pessoais e (d) conteúdo de comunicações privadas, por parte de provedores da internet, nada mais faz do que deixar claro que são elementos distintos e inconfundíveis – por isso, catalogados separadamente.
Terceiro porque, mesmo inexistindo um direito absoluto à intimidade, o afastamento de tal garantia somente é possível em acordo com as regras de legislação ordinária – ou seja, não é possível ao Poder Judiciário afastar tal garantia somente com base no princípio da proporcionalidade/razoabilidade. Pelo contrário, se própria constituição estabelece a lei ordinária como fonte única de regramento para tais hipóteses, não há terceira via.
Conclui-se, portanto, que o limite legal é claro em estabelecer que a autoridade administrativa pode solicitar, direta e tão somente, preservação de registros de conexão e de acesso – em hipótese alguma, conteúdo de mídia.
Nesta exata linha argumentativa se encontram os votos dos Ministros Edson Fachin e Rosa Weber, expostos durante o julgamento conjunto da ADI 5527 e da ADPF 403, no sentido de que os Direitos digitais são direitos fundamentais, que a privacidade é o direito de manter o controle sobre a sua própria informação, e que metadados não se confundem com conteúdo.
Para Fachin, na internet, a proteção de privacidade não é apenas proteção individual, mas garantia instrumental do direito à liberdade de expressão. Isso porque o fluxo de informações é feito tanto pelos dados que são recebidos, quanto pelos dados enviados. Toda e qualquer escolha do usuário, inclusive não realizar escolha alguma, pode ser medida, calculada, comparada e comprada. Ficar sozinho não significa ficar em silêncio. Por isso, novamente, feliz a definição de Stéfano Rodotà: “a privacidade é o direito de manter o controle sobre a sua própria informação e de determinar a maneira de construir sua própria esfera pública” (RODOTÀ, Stéfano. Data Protection as a Fundamental Right. In: In: Gutwirth S., Poullet Y., De Hert P., de Terwangne C., Nouwt S. (eds). Reinventing Data Protection? Dordrecht: Springer, 2009, p. 78).”
Nas palavras da ministra Rosa Weber, abordando a distinção e os limites aqui debatidos de forma direta e conclusiva, o registro de que a obrigação de guarda de metadados, de que trata o artigo 15 do Marco Civil da Internet, não se estende a conteúdo (…) Tal obrigação, à evidência, não se estende ao conteúdo das comunicações (…).
Inequívoca a conclusão, portanto, de que: (e) existe diferença entre “informações cadastrais”, “registros de acesso” (metadados), “registros de conexão” e “conteúdo”, assim como (f) existe limitação legal para requisição direta de autoridades administrativas, delegados de Polícia e Ministério Público às empresas de internet, restrita, essa, ao acesso ou guarda de informações de dados cadastrais (parágrafo 3º, artigo 10º) ou registros de conexão (parágrafo 2º, artigo 13º) e registros de acesso (parágrafo 2º, artigo 15º).
Como consequência, a preservação de conteúdo, via requisição direta das autoridades acima, viola frontalmente a lei e, consequentemente, a Constituição Federal. Assim, não pode prevalecer quando tais ações forem questionadas junto ao Poder Judiciário, mesmo quando o acesso ao material – que, por sua natureza, reflete um momento posterior à preservação – for devidamente autorizado mediante ordem judicial fundamentada.
*Daniel Gerber é advogado criminalista com foco em gestão de crises e compliance político e empresarial. Sócio-fundador dos escritórios Daniel Gerber Advogados Associados (Brasília-DF e Porto Alegre-RS) e Gerber & Guimarães Advogados Associados (Palmas-TO)

Fonte: Estadão